A Corrida Eleitoral: entre pilares democráticos e dopings retóricos

01/09/2018

                                                                                       “É um teste de extremo desejo

A batida do seu coração ao subir montanha acima

Você tem que pegar o passo

Se quiser continuar na corrida”

(Marathon, Rush)[1]

 

Nenhuma metáfora parece tão apropriada quanto a de comparar as eleições presidenciais ao atletismo. Munidos de palavras e ideias, reais ou ilusórias, factíveis ou não, todos percorrem longo caminho em busca do voto. Obstáculos de toda a ordem surgem no decorrer do trecho: subidas, declives, falta de estrutura e bons equipamentos, perda de foco e, até mesmo, o despreparo.

Tal como a democracia, a maratona surgiu na Grécia antiga, há 490 anos antes de Cristo, quando Pheidíppides correu cerca de 40 km entre as cidades de Maratona e Atenas para dar a notícia da vitória grega sobre os persas (há outras versões para o seu surgimento). E da mesma forma com que se deu a participação feminina nas eleições, que só começou a ganhar força com a introdução do direito ao voto nas primeiras décadas do Século XX, a primeira mulher a ter um resultado oficialmente reconhecido foi a inglesa Violet Piercy, em 1926. E por mais constrangedor que possa parecer para todos nós hoje em dia (e é), a estreia das mulheres na modalidade olímpica ocorreu somente em 1984 (o que são 34 na história?), quando a norte-americana Joan Benoit Samuelson venceu a disputa mesmo passando por uma artroscopia no joelho duas semanas antes. Qualquer semelhança com os obstáculos com que se deparam as mulheres nas disputas não é mera coincidência[2].

Não se faz uma maratona de uma hora para outra, é preciso muito empenho e dedicação, sob pena de colapso de órgãos e estruturas internas não preparadas para tamanho esforço. Não se pode prescindir, também, de um staff de qualidade, que municie o atleta de tudo o que for necessário para chegar ao final, se possível, na primeira posição, que na corrida eleitoral majoritária é o que realmente importa. Desde sua nutrição (os valores que absorveu durante sua carreira política), passando pelas análises estatísticas (desempenho nesse ou naquele cenário/local), até o estudo do percurso, e por onde seus adversários são melhores, tudo depende de uma análise cuidadosa por parte daqueles que cercam o pretendente ao topo do pódio.

Ponto importante nessa série infindável de possíveis comparações é o patrocínio dos atletas, sem o que não há a menor possibilidade de competir com alguma chance de êxito. Com o fim do financiamento por parte de empresas, candidatos ricos e empresários bancaram, até aqui, 93% das altas cotas de doação em 2018, conforme noticia a Folha de São Paulo, dando conta, inclusive, de que um homem de negócios doou dois milhões para a campanha do seu neto[3]. Afortunado, não? Enfim, nada muito diferente do quadro anterior, quando o modelo permitia a participação de pessoas jurídicas.    

Como em toda boa competição, foram estabelecidas regras para todos os corredores, mas elas pecam tanto pela instabilidade do sistema como pela proposital impossibilidade de dar resposta à desigualdade de oportunidades entre os maratonistas (veja-se, por exemplo, a publicidade institucional a que alguns têm acesso nos três anos e meio anteriores ao pleito, em que pese a vedação de utilizá-la politicamente (?)). Nesse confuso circuito, o papel da Justiça Eleitoral é tentar evitar o abuso de poder, a trapaça, a deslealdade de um competidor ou de um torcedor fanático, como aquele que tirou a quase medalha de ouro do brasileiro Vanderlei Cordeiro de Lima ao agarrá-lo na parte final da corrida em Atenas, no ano de 2004. Fanatismo, a propósito, que pode estar em qualquer lugar nos dias atuais, notadamente nas redes sociais, abastecidas diariamente com fake news, perfis falsos e conteúdo gerado por inteligência artificial (nessa seara política, ainda prefiro a natural, orgânica de preferência). Aliás, com sua alta capilaridade, a possibilidade de uma reputação ser construída ou destruída no ambiente digital é diretamente proporcional ao número de seguidores e de como o atleta consegue se comunicar com sua torcida.

Denúncias de abusos - os mais variados (político, econômico e até mesmo religioso, dentre outros), chegam incessantemente a cada eleição aos órgãos oficiais de controle, cuja função precípua é garantir a lisura da competição, dando a cada um as mesmas chances de participação, tarefa demasiadamente complexa, na medida em que a legislação, repita-se, é desigual no tratamento dos atletas, como se vê nos casos de patrocínio, de possibilidade de êxito de candidaturas femininas e da população negra (esta que não possui qualquer cota para cargos eletivos, sequer de candidaturas)[4], no tempo e na forma de acesso à propaganda, para ficar com alguns exemplos. A trinca democrática de ouro, representada pelos ideais de liberdade, igualdade e controle do poder, fica seriamente comprometida.

Nesse contexto, com casos e mais casos de doping publicitário, midiático e financeiro, que se espraia por muitos mandatos posteriormente – com a troca de favores e a prática de lobby (sequer regulamentado no Brasil), o que se percebe é que a corrida eleitoral tem se tornado cada vez menos atrativa para o eleitor, desencantado com os possíveis diplomados ou laureados. Acredita que a linha de chegada de mais uma corrida eleitoral desnudará, novamente, o mesmo penoso caminho a que está acostumado, com os obstáculos do dia a dia, como se estivesse a correr em um constante aclive. Tal desumano esforço foi retratado por Albert Camus quando criou o Mito de Sísifo, segundo o qual o protagonista tinha a hercúlea missão de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, mas sempre que chegava muito próximo de concluir a tarefa, a pedra rolava e ele tinha que recomeçar todo o percurso do zero, e ainda mais cansado.

Essa apatia atual não pode prevalecer, contudo. A democracia não pode garantir a todos os bens e virtudes que dela esperamos (como acertadamente dizem os politólogos, dentre eles Innerarity), ela está, na verdade, em constante construção. A única certeza é a de que, em sua ausência, os valores mais caros por ela defendidos, tais como os mencionados ideais de liberdade (política e civil), igualdade (formal e material) e controle de poder (transparência, responsividade, accountability etc), não encontram ambiente para o seu desenvolvimento.

O nosso distanciamento dos corredores (e deles de nós) é, talvez, o pior erro que possamos cometer. É preciso reencontrar a conexão perdida, com responsabilidade, em prol do efetivo interesse público, consistentes no zelo pela coisa pública, na redução das desigualdades sociais e econômicas, no compromisso com os direitos fundamentais de todos os cidadãos (sim, não há democracia sem tal respeito), no incentivo à educação, na prevenção de doenças e no amparo à saúde e, ainda, na redução da criminalidade que assola o Brasil. Como fazer isso sem o risco de dopings retóricos ou populistas? Pergunte ao seu candidato (ou tente aferir suas propostas nesse sentido). A largada foi dada e o que virá depois do pódio é problema de todos nós – e exige nossa participação para tentar resolvê-lo, afinal: “mais do que apenas uma ambição cega; mais do que apenas uma simples cobiça; mais do que apenas a linha de chegada; você precisa alimentar esta necessidade ardente”[5].     

 

[1] Tradução disponível em https://www.letras.mus.br/rush/34602/traducao.html. Acesso em 28.08.18.

[2] Disponível em http://www.webrun.com.br/historia-da-modalidade-maratona/. Acesso em 28.08.18.

[3] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/08/empresarios-e-politicos-de-alto-patrimonio-bancam-93-de-grandes-doacoes.shtml. Acesso em 28.08.18.

[4] FARIA, Fernando de Castro. A sub-representação da população negra nas esferas de poder. Disponível em https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/acts/article/download/13034/7449. Acesso em 28.08.18.

[5] Tradução disponível em https://www.letras.mus.br/rush/34602/traducao.html. Acesso em 28.08.18.

 

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