Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
A vida da pessoa surda é repleta de desafios. Por onde nós formos, iremos encontrar barreiras. A negligência do Estado e da sociedade, o esquecimento dos nossos direitos, são a primeira parte da problemática. A pessoa surda é tratada como estrangeira no seu próprio país, ou talvez até pior: muitos sabem acolher estrangeiros, mas não sabem acolher os surdos. No Brasil, 27% da população sabe falar uma língua estrangeira, porém menos de 5% dos brasileiros sabem falar a língua dos seus concidadãos surdos.
Além do acesso a direitos, a socialização da pessoa surda também representa um desafio deveras doloroso. É complexo para o surdo viver no mundo ouvinte de maneira plena. Muitas vezes, nossos diálogos são sufocados pelo silêncio e pela barreira comunicativa. Os surdos sinalizados ou diagnosticados com surdez total encontram dificuldade de achar quem saiba sua língua. Segundo dados de 2022 divulgados pelo Ministério da Educação, somente 4,61% da população sabe falar em Libras, o que restringe o acesso à comunicação pelas pessoas surdas sinalizantes. Enquanto isso, pessoas surdas moderadas ou leves são socializadas como ouvintes e são forçadas à comunicação oral-auditiva, e apesar das dificuldades, têm os seus direitos negados e são forçados a se encaixar num padrão no qual não se encaixam.
O mundo ouvinte tem o costume de menosprezar a dificuldade alheia. Ouvintes acreditam que ouvir e se comunicar é privilégio e não direito. Acreditam que a perda auditiva parcial não é uma desvantagem em relação aos ouvintes, mas um privilégio em relação aos surdos profundos e totais. Diagnóstico não é sentença, mas a nossa surdez não é privilégio nem escolha. Nós nos aceitamos como somos, aprendemos a gostar de nós mesmos ainda que nos chamem de tolos e burros só porque não ouvimos qualquer coisa trivial que nos falaram numa roda de conversa. Aprendemos a nos amar mesmo quando nos disseram sobre o quanto somos barulhentos e demonstraram repugnância ao ouvir a nossa voz.
Teóricos da psicologia social encaram a socialização como um processo de interiorização e aprendizado de normas e valores culturais que ocorre desde a primeira infância. No processo de socialização, a comunicação, seja pela via oral-auditiva ou pela língua sinalizada, é fundamental para que a criança se desenvolva socialmente sem nenhuma defasagem. Segundo o art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, é dever da escola, da família, da sociedade e do Estado prover inserção social e efetivação de seus direitos inerentes à vida, dignidade, trabalho, lazer, educação, cultura, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária. Por isso, se menos de 5% da sociedade brasileira sabe a língua de uma criança surda, de que forma ela terá os seus direitos efetivados e providos?
Os surdos que encontram amigos na comunidade surda são mais felizes, e socialmente melhor sucedidos porque têm uns aos outros. Mas os surdos que não conseguiram encontrar amigos surdos não conseguem amizades tão facilmente no mundo ouvinte. Permanecem sozinhos ou despendem muito mais empenho para criar, manter e fortalecer laços de amizade. Na comunidade surda, somos acolhidos uns pelos outros. No mundo ouvinte, somos segregados e condenados ao silêncio e à solidão, a menos que nos tornemos aqueles triângulos de brinquedo que os bebês insistem em tentar encaixar onde caberia um círculo. Por quê? Por que desejam tanto separar os mundos em "mundo ouvinte" e "mundo surdo"?
Segundo o art. 4º do Estatuto da Pessoa com Deficiência, todas as pessoas com deficiência têm direitos às mesmas oportunidades e é proibida qualquer forma de discriminação, que, por sua vez, é tipificada como crime pelo art. 88 da mesma normativa. Entretanto, ouvintes e surdos ainda estão separados em “mundos” diferentes que não se aproximam e se repelem devido à barreira linguística. Enquanto os surdos utilizam-se de aparelhos auditivos, submetem-se a cirurgias de implante coclear, realizam terapias fonoaudiológicas para aprendizado da leitura labial a fim de facilitar a comunicação com os ouvintes, estes últimos não se mobilizam para aprender a Libras ou mesmo mitigar o capacitismo que lhes foi ensinado durante sua trajetória de vida.
Os debates mais recentes nos espectros ideológicos atuais acerca da legalização e descriminalização do aborto, tipificado nos artigos 124 a 126 do Código Penal Brasileiro, abrem espaço não somente para a segregação, mas também para a eugenia. Se os ouvintes soubessem a trajetória sofrida da comunidade surda ao longo da história do mundo, jamais cogitariam dialogar sobre a possibilidade de nos matar dentro do útero. Na Grécia Antiga, os surdos recém-nascidos eram jogados do alto do Monte Etna. Na Roma Antiga, o surdo era visto como objeto de posse dos seus pais. No Holocausto, surdos utilizavam um cetim azul amarrado nas mãos para não utilizar a Língua de Sinais, e eram condenados a morrer de fome e nas câmaras de gás, bebês recém-nascidos surdos eram queimados em fornalhas. Gestantes que contraíram rubéola na gravidez e geravam suspeita de surdez fetal eram obrigadas a abortar. Por causa de muita luta, o cetim azul deixou de ser uma condenação, mas ainda há uma parcela significativa de determinados espectros ideológicos que insiste em nos tolher o direito de nascer e viver sob o argumento manso e inofensivo de proteger “direitos reprodutivos”. Metade dos que são favoráveis à mentalidade eugenista correlacionada à descriminalização do aborto defende a opção da mãe em abortar o próprio filho com deficiência. A outra metade defende o aborto por ignorância e nem cogita nos colocar nesta equação, pois ignoram a nossa existência no mesmo mundo em que elas vivem.
Na realização do Exame Nacional do Ensino Médio em 2017, quando a escolha do tema esteve relacionada aos desafios educacionais da comunidade surda no Brasil, houve revoltas dos estudantes que mobilizaram as redes sociais, gerando comentários como: “tanta coisa acontecendo no mundo e o INEP nos pede para falar dos surdos”, como se a comunidade surda não fizesse parte do mundo e estivesse excluída, marginalizada, e colocada à parte, o que enfatiza o quanto estamos de fato segregados no mundo ouvinte e a tamanha importância de temáticas como essa serem escolhidas para a redação de um Exame Nacional.
Por que essa ótica segregacionista e eugenista domina a nossa vida se todos nós compartilhamos o mesmo mundo? Não deveríamos ter dois mundos diferentes, mas realidades culturais que se distinguem, mas partilham a mesma existência. Ouvintes deixam os surdos sozinhos por escolha, e só na comunidade surda encontramos apoio necessário. Somos uma comunidade surda porque apesar de sermos indivíduos surdos diferentes, com trajetórias diferentes, pensamentos diferentes, objetivos diferentes, e até mesmo diagnósticos e identidades surdas diferentes, ainda somos uma comunidade surda para que nenhum surdo acredite que está sozinho nesse mundo.
Quando os surdos se encontram, fazem muito barulho. É bonito. Significa que estão felizes porque têm uns aos outros. É bonito ver o barulho que os surdos fazem, porque no mundo ouvinte lá de fora, eles ficam em silêncio por tempo demais. Os surdos costumam ser intensos, porque carregam diálogos que permanecem guardados e presos por muito tempo. Todo diálogo carrega sentimento e quanto mais prisioneiros se encontrarem os diálogos e sentimentos, mais intensos eles se tornam até se manifestarem. Surdos precisam encontrar outros surdos. Mas quando um surdo não encontra os outros, tal qual uma ovelha perdida, o que ele faz? Como ele superará sozinho o mundo ouvinte que não contempla a sua realidade?
A solidão da pessoa surda precisa ser falada em voz alta para que os ouvintes nos ouçam. Para quem escuta, o mundo ouvinte é bom, porque gira em torno de si. Contudo, enquanto o mundo gira em torno dos ouvintes, os surdos permanecem sem direitos básicos e sem dignidade nem respeito. Para os ouvintes, o mundo pode continuar como está, mas para os surdos, o mundo ouvinte é feito de silêncios e de amigos que vão embora.
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