- Resumo
Este trabalho discute o Caso do Povo Indígena Xucuru junto a Corte Interamericana de Direitos Humanos em contraste com a abordagem do caso no Direito doméstico. Parte-se de um panorama do desenvolvimento da legislação nacional sobre o tema de demarcação de terras indígenas para elucidar quais aspectos têm influenciado no não cumprimento pelo Estado Brasileiro em garantir o usufruto exclusivo dos povos indígenas de seus territórios tradicionais para assim discutir o Caso Xucuru. Para tanto, utilizou-se do levantamento bibliográfico exploratório para compor as fontes que ampararam esta reflexão. Identificou-se a partir desta breve reflexão um descompasso entre a abordagem doméstica frente aos acordos internacionais aos quais o Estado Brasileiro é signatário, além de um complexo encadeamento de questões socioeconômicas e um enfraquecimento do órgão nacional de proteção aos direitos indígenas contribuem para a ineficiência na efetivação plena dos direitos desses povos ao usufruto exclusivo de seus territórios tradicionais.
Palavras Chave: povos indígenas, Corte Interamericana de Direitos Humanos, Terras Indígenas.
2. Introdução
O presente trabalho é resultado das reflexões teóricas provocadas durante a disciplina de 'Cortes e Juízes em Perspectivas Comparadas', sendo o trabalho de finalização da disciplina. O objetivo aqui foi contrastar o Caso do Povo Indígena Xucuru na Corte Interamericana de Direitos Humanos e na abordagem doméstica. Para isso, foram descritos pontos de diferença entre as abordagens e questões de recuperação histórica no Direito brasileiro para elucidar as divergências na garantia legal e a efetivação do pleno direito dos povos tradicionais no usufruto desse direito.
O caso em questão foi o oitavo, de origem brasileira, analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e aborda a demora do Estado em agir para garantir a efetivação do direito ao reconhecimento, demarcação e titulação das terras indígenas no Brasil, conforme previsto na legislação brasileira desde a Constituição Federal de 1934, sendo mencionado na carta magnas de 1937, 1946, 1967, 1969 e na Constituição Federal de 1988.
O caso dos povos xucurus permitiu que a Corte Interamericana de Direitos Humanos aprofundasse sua jurisprudência em matéria de direitos dos povos indígenas. Em especial, na demarcação e delimitação das terras e territórios indígenas, para assegurar o direito à propriedade coletiva e as garantias judiciais e proteção judicial.
Conforme o relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, a questão humanitária dos povos indígenas no Brasil permanece crítica. Apesar dos avanços registrados na legislação, a CIDH vê como grave e preocupante as condições dos povos e comunidades indígenas do Brasil. Aos registros de ameaça de invasão aos seus territórios por não indígenas, somam-se profundos desafios quanto à titulação e proteção de suas terras e, em inúmeros casos, os povos e comunidades indígenas se veem sem a necessária proteção do Estado. (OAS, 2021)
O tema segue atual visto que as questões de demarcação de terras indígenas ainda apresentam fragilidade e há processos pendentes de julgamento no Supremo Tribunal Federal - STF gerando insegurança jurídica e violação de direitos constitucionais e das garantias estabelecidas em Tratados e Convenções Internacionais.
3. Legislação Brasileira: A construção dos direitos das comunidades e povos tradicionais
No Direito brasileiro, o tema terras indígenas não é recente. Cavalcante (2016) apresenta de maneira muito didática um panorama acerca da cronologia na legislação brasileira que aborda o tema. O autor remete às primeiras previsões em lei ao tempo do Brasil Colônia, quando a Coroa Portuguesa já garantia alguns direitos aos indígenas sobre as terras que ocupavam por meio do Alvará Régio de 1º de abril de 1680.
Desde essa primeira garantia o Direito brasileiro seguiu garantindo em seus textos constitucionais de 1934, 1937 e 1946 o direito desses povos sobre as terras que habitam permanentemente. Saliente-se aqui a previsão de "habitação permanente", sem considerar nada além das instalações habitacionais dos povos.
A partir da Constituição de 1967, além da posse, o texto constitucional passou a prever a utilização exclusiva das riquezas e a inalienabilidade das terras, que se configura como a primeira base para o conceito jurídico de "terras indígenas", como aponta Cavalcante (2016). No entanto, é apenas em 1973 que, por meio da Lei 6.001 de 1973, o Estatuto do Índio, que regulamentou a matéria territorial indígena, conforme previsto na Emenda Constitucional n.º1 de 1969 que o conceito de "Terras Indígenas" passa a integrar o ordenamento jurídico brasileiro, conforme aponta Cavalcante (2016).
O Estatuto do Índio define três tipos de terras indígenas em seu artigo 17, a saber: a) terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas: que se caracterizam como áreas tradicionalmente ocupadas por indígenas independente da demarcação ou reconhecimento prévio do Estado; b) as áreas reservas: criadas e demarcadas pelo Estado para a posse e ocupação de indígenas independente de marcação prévia; e c) terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas: terras que os grupos indígenas têm propriedade. Nos casos a e b, a propriedade, no entanto, é da União, sendo garantido aos povos indígenas o usufruto exclusivo e a inalienabilidade.
No artigo 19 da mesma lei, fica instituído o processo a demarcação administrativa dessas terras, conferindo ao ao órgão federal de assistência ao índio a competência de realizar de acordo com o processo estabelecido os trâmites administrativos para as demarcações de terras. Sendo necessária a homologação pela Presidência da República. O artigo citado ainda define que com a demarcação processada, não é possível a concessão de interdito possessório.
Além de estabelecer os parâmetros para a demarcação das terras indígenas, a Lei 6.001 de 1973 estabeleceu o prazo de cinco anos para a demarcação daqueles territórios ainda não demarcados. No entanto, como apresenta Cavalcante (2016), o Estado não cumpriu o prazo estabelecido. O autor apresenta como exemplo o estado do Mato Grosso do Sul que, entre 1970 e 1980, sequer se reconheciam as reivindicações. Cavalcante (2016) também traz dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) do início dos anos de 1980 que consideravam o Mato Grosso do Sul como uma das áreas culturais com mais terras indígenas demarcadas.
A Constituição Federal de 1988 trouxe pontos importantes que permitiram modificar o entendimento sobre os direitos indígenas. Conceitos como originalidade no direito dos índios às terras de ocupação tradicional e modificando o entendimento de que as terras indígenas são criadas a partir de sua demarcação, entende-se a partir de agora como um ato de reconhecimento realizado pela União Federal.
Novamente, foi estabelecido no artigo 67 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, o prazo de cinco anos para a demarcação das terras indígenas. De acordo com o relatório "Situação dos Direitos Humanos no Brasil" da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, "ainda existiriam 847 territórios indígenas com alguma pendência a ser sanada pelo Estado brasileiro para a sua titulação".
O processo de demarcação de terras indígenas a partir da constituição de 1988 passou a ser regido pelo artigo 231 da carta magna e pela Lei 6.001 de 1973 naquilo que não a contraria e é regulamentada pelo Decreto 1.775/1996. Os textos definem como etapas para o processo de demarcação: a) Identificação e Delimitação; b) Declaração; c) Demarcação Física; d) Homologação; e e) Registro.
Mesmo com a não interrupção da garantia do usufruto de suas terras, os povos indígenas sofreram ao longo do tempo com o conflito pela posse das áreas tradicionalmente ocupadas. Seja desde o início da colonização portuguesa e a ocupação das terras economicamente e estrategicamente interessantes para a Coroa, onde essas populações foram empurradas o interior do país; ou ainda em conflitos com agricultores e fazendeiros que foram sobrepondo suas propriedades às terras utilizadas pelos povos indígenas para caça, extrativismo ou pesca; ou ainda em conflitos com o próprio Estado como nos casos da Usina Hidrelétrica de Itaparica (BA) e da Hidrelétrica de Belo Monte (PA).
Em janeiro de 2019, por meio da Medida Provisória n.º 870, a Presidência da República remanejou a competência para demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Um dos desdobramentos mais recentes no que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos aponta em seu relatório como enfraquecimento da Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
- Análise do caso do Povo Indígena Xucuru
4.1 O desenvolvimento do caso no Brasil
Registros históricos demonstram a ocupação dos povos Indígenas Xucuru na área do estado de Pernambuco desde o século XVI, entretanto o processo de demarcação e titulação das terras indígenas iniciou-se após a promulgação da Constituição de 1988, em 1989. Nesse período a regulamentação seguia os normativos disciplinados no Decreto nº 94.945 de 1987.
Os procedimentos adotados, segundo o Decreto 94.945/87, envolvia a realização de diversas etapas iniciando com a proposta de demarcação por parte da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, estudo de Grupo Técnico e manifestação do Ministro da Justiça.
Entretanto, em 8 de janeiro de 1996, foi promulgado Decreto Nº1775/96 que introduziu mudanças no processo de demarcação, reconhecendo a terceiros o direito interessados no território em questão impugnar o processo demarcatório e ingressar perante o judiciário para questionar o direito à propriedade e indenizações.
Com essa alteração foram realizadas 270 objeções contra o processo demarcatório, incluindo o próprio município de Pesqueira, onde o território dos povos Xucurus estava sendo demarcado. Apesar do Ministério da Justiça declarar todas as objeções improcedentes, os terceiros interessados ingressaram com Mandado de Segurança no Superior Tribunal de Justiça, sendo determinado novo prazo para apresentação de objeções administrativas em maio de 1997.
Por conta das diversas ações judiciais a questão sobre a demarcação das terras do povo Xucuru demorou muitos anos para ser concluída. Em 2001 foi expedido decreto de homologação das terras pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Em seguida foi solicitada o registro do território em 17 de maio de 2001, porém novas interposições foram arguidas e somente em junho de 2005 foi executada a titulação da terra.
Enquanto o processo de delimitação, demarcação e desintrusão da terra indígena do povo Xucuru se arrastava judicialmente, um contexto de insegurança e ameaças se instalava, resultando na morte de vários líderes indígenas da comunidade, incluindo o chefe do povo Xucuru: o Cacique Xicão.
A violência contra a demarcação das terras indígenas culminou com o assassinato em 21 de maio de 1998 do cacique Xicão, ficou comprado que o mandante intelectul do crime foi um fazendeiro e ocupanate não indigena do território Xucuru, mostrando claramente a relação do assassinato com a questão da demarcação territorial. Após o assassinato do cacique o clima permaneceu violento, seu herdeiro o cacique Marquinhos recebeu ameaças e sofrendo inclusive um atentado que vitimou outros membros do povo Xucuru.
4.2 O caso na Comissão e na Corte Interamericana de Direitos Humanos
As denúncias de violações de direitos humanos sofridas pelos membros do Povo Xucuru foram peticionados perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 16 de outubro de 2002 pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos/Regional Nordeste, o Gabinete de Assessoria Jurídica das Organizações Populares (Gajop) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) sendo identificado na CIDH como caso 12.728.
O Relatório de Admissibilidade do caso foi aprovado em 29 de outubro de 2009 e em 29 de julho de 2015 a Comissão Interamericana elaborou Relatório de Mérito concluindo que o Estado brasileiro era responsável internacionalmente pela violação do direito à propriedade, dos direito à integridade pessoal, dos direitos às garantias e à proteção judiciais em detrimento do Povo Indígena Xucuru e seus membros.
A Comissão recomendou ao Estado a adoção de medidas com brevidade para garantir a posse efetiva da terra indígena de forma pacífica, respeitando o modo de vida tradicional; A conclusão dos processos judiciais interpostos por pessoas não indígenas sobre parte do território do Povo Indígena Xucuru; A reparação das violações de direitos enunciados no Relatório de Mérito; E adoção de medidas para evitar que fatos semelhantes ocorressem.
O Estado foi notificado sobre o Relatório do Mérito e recebeu prazo de dois meses para informar sobre o cumprimento das recomendações. Apesar da prorrogação do prazo, o Estado não comprovou avanço substancial em atender as recomendações, bem como não apresentou informação concreta sobre avanços na reparação ao Povo Indígena Xucuru pelas violações declaradas no Relatório de Mérito.
Em março de 2016, em virtude de considerar que o Estado Brasileiro não atuou para o cumprimento das recomendações anteriormente realizadas, a Comissão submeteu o caso à Jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos solicitando que fosse declarada a responsabilidade do Brasil pelas violações que constavam no Relatório de Mérito e a adoção das recomendações do relatório.
A Comissão apresentou à Corte Interamericana de Direitos Humanos as ações e omissões estatais que ocorreram, após 10 de dezembro de 1998, data de aceitação da competência da Corte por parte do Estado brasileiro.
As violações analisadas pela Corte foram elencadas em dois eixos: o primeiro relacionada à propriedade (art. 21 da Convenção Americana), bem como do direito à integridade pessoal (art. 5 da Convenção Americana) e o segundo, é relativo às garantias e à proteção judicial (art. 8.1 e 25.1 da Convenção Americana) em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento.
1) a violação do direito à propriedade coletiva do Povo Indígena Xucuru, em virtude de uma demora de sete anos sob a competência temporal da Corte no processo de reconhecimento desse território;
Art. 21. Direito à propriedade privada
Toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social.
Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei.
Tanto a usura como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem devem ser reprimidas pela lei. (OAS, 1969)
2) a violação do direito à propriedade coletiva, em razão da falta de desintrusão que é o procedimento legal para concretizar a posse efetiva da terra indígena. A ausência desse instrumento jurídico para garantir a efetivação plena dos direitos territoriais indígenas, por meio da retirada de eventuais ocupantes não indígenas.
Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno
Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades. (OAS, 1969)
3) a violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial vinculadas à mesma demora no processo administrativo de reconhecimento;
Artigo 8. Garantias judiciais
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (OAS, 1969)
4) a violação do direito à integridade pessoal dos membros do Povo Indígena Xucuru, respeitada a competência temporal, em consequência das violações anteriores e da consequente impossibilidade de exercer pacificamente o direito à propriedade coletiva sobre suas terras e territórios ancestrais;
Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos
Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. (OAS, 1969)
5) a violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, considerando apenas a competência temporal, em razão da demora na decisão das ações civis interpostas por ocupantes não indígenas sobre partes do território ancestral.
Artigo 8. Garantias judiciais
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (OAS, 1969)
Artigo 25. Proteção judicial
Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais. (OAS, 1969)
O Estado e os representantes foram notificados da apresentação do caso à Corte Internacional em 19 de abril de 2016. A contestação do Caso perante à Corte foi apresentada em 14 de setembro do mesmo ano pelo Estado brasileiro que interpôs cinco exceções preliminares e se opôs às violações alegadas.
Primeira alegação: inadmissibilidade do caso, argumentando que o relatório de mérito foi publicado pela comissão antes do envio da demanda à Corte - pedido este, improcedente.
Segunda e terceira alegação: Temporalidade, defesa baseada em que os fatos são anteriores à adesão do Brasil à Convenção Americana - o pedido foi julgado parcialmente procedente, estabelecendo a data de 10 de dezembro de 1998, data de reconhecimento da competência da Corte, como marco temporal para análise da violação.
Quarta alegação: ratione materiae a respeito de uma suposta violação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), alegando a incompetência material da Corte em razão do instrumento não ser parte do sistema de proteção - pedido improcedente, pois a disposição em questão não era objeto do litígio.
Quinta alegação: ausência de esgotamento dos recursos internos, afirmando que os povos indígenas poderiam ter utilizado outros meios para garantir seus territórios, incluindo a retirada de não indígenas das terras em questão - o pedido também foi improcedente, pois o Brasil “não especificou os recursos internos pendentes de esgotamento ou que estavam em curso, nem expôs as razões pelas quais considerava que eram procedentes e efetivos no momento processual oportuno”.
Após análise das exceções preliminares e cumprimento de todas as fases procedimentais, a Corte Interamericana iniciou a deliberação da Sentença em 5 de fevereiro de 2018.
4.3 Proteção definida pelas Cortes:
Apesar do Estado brasileiro ter apresentado defesa para as violações definidas pela Corte, suas alegações apresentam como argumentos: 1) a proteção Constitucional que é dada às comunidades tradicionais; 2) a justificativa da demora no processo demarcatório como necessária para e transparência do procedimento e garantia do contraditório a todas as partes envolvidas sendo justificada em razão da complexidade; 3) o enfoque no quantitativo insignificante quanto a presença de ocupantes não indígenas nas terras, estando os indígenas estão de posse de quase a totalidade do território; A Corte responsabiliza internacionalmente o Estado pela violação do direito à garantia judicial de prazo razoável, pela violação do direito à proteção judicial, bem como do direito à propriedade coletiva.
O Estado brasileiro foi condenado pela violação do direito à garantia judicial de prazo razoável, previsto no artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em detrimento do povo Indígena Xucuru. A jurisprudência da Corte destacou a necessidade de mecanismos administrativos efetivos e expeditos para proteger, garantir e promover seus direitos sobre os territórios indígenas, mediante os quais se possam levar a cabo os processos de reconhecimento, titulação, demarcação e delimitação de sua propriedade territorial.
O Estado também foi responsabilizado pela violação do direito à proteção judicial, bem como do direito à propriedade coletiva, previsto nos artigos 25 e 21 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em detrimento do Povo Indígena Xucuru. A demora excessiva no processo de demarcação e titulação e a resolução das ações judiciais interpostas por terceiros, não foram efetivos, nem garantiram segurança jurídica ao povo Xucuru.
A Corte utilizou jurisprudência de outros casos para reafirmar que “os povos indígenas e tribais têm direito a que existam mecanismos administrativos efetivos e expeditos para proteger, garantir e promover seus direitos sobre os territórios”. Além disso, destacou a importância do cumprimento da previsão legal, não sendo suficiente a existência de normas que assegurem as demarcações de terras, mas que os processos e procedimentos adotados no Brasil tenham efetividade prática.
A condenação do Brasil na Corte reflete a necessidade do Estado atuar de maneira célere para a situação de demarcação das terras das populações tradicionais, considerando principalmente a relevância das terras para essas populações, que vai das questões de preservação ambiental e da territorialidade, há de se refletir sobre a vinculação cultural entre as populações tradicionais e as terras que ocupam.
Com base no artigo 63.1 da Convenção Americana, a Corte Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu a obrigação de reparação de danos, incluindo o pagamento indenizatório, a publicação da sentença de condenação no Diário Oficial e a adoção de medidas específicas para o caso.
Conforme o painel de monitoramento das decisões da Corte IDH em relação Brasil, disponibilizado no site do Conselho Nacional de Justiça, o Brasil cumpriu apenas a sentença 199, que dispões sobre o dever do estado proceder com as publicações do resumo oficial da Sentença e o texto integral, por um período de, pelo menos, um ano, em uma página eletrônica oficial do Estado.
O Brasil publicou o resumo oficial da sentença no Diário Oficial da União em 13 de setembro de 2018. O Estado também disponibilizou o resumo e a íntegra da sentença nos sites dos ministérios das Relações Exteriores e dos Direitos Humanos em 5 de julho e em 28 de agosto de 2018.
Ainda conforme o painel do CNJ resta pendente de cumprimento:
- A conclusão do processo de desintrusão do território indígena Xucuru, com extrema diligência, efetuar os pagamentos das indenizações por benfeitorias de boa-fé pendentes e remover qualquer tipo de obstáculo ou interferência sobre o território em questão, de modo a garantir o domínio pleno e efetivo do povo Xucuru sobre seu território, em prazo não superior a 18 meses, nos termos dos parágrafos 194 a 196 da presente Sentença.
- O pagamento das quantias fixadas nos parágrafos 212 e 216 da presente Sentença, a título de custas e indenizações por dano imaterial, nos termos dos parágrafos 217 a 219 da presente Sentença.
- A garantia, de maneira imediata e efetiva, o direito de propriedade coletiva do Povo Indígena Xucuru sobre seu território, de modo que não sofram nenhuma invasão, interferência ou dano, por parte de terceiros ou agentes do Estado que possam depreciar a existência, o valor, o uso ou o gozo de seu território, nos termos do parágrafo 193 da presente Sentença.
- Conclusão
Apesar de garantida pela Constituição Federal, inclusive anteriores a Carta de 1988, o Estado Brasileiro tem falhado na efetivação na demarcação e garantia de usufruto exclusivo dos territórios tradicionais dos povos indígenas. Segundo o relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil realizado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos de 2021, a demarcação das terras não vem sendo concluída dentro do prazo definido para os processos, conforme estabelecido pelo artigo 67 da ADCT de 1988, nem foram concluídos nos 5 anos determinados no texto constitucional. De acordo com os dados apresentados pela CIDH atualmente ainda existem 847 territórios indígenas com pendência de regularização.
A convergência entre o entendimento local e o internacional é grande no sentido de reconhecer o direito dos povos tradicionais às terras por eles ocupadas historicamente. O que há, no entanto, é uma diferença procedimental na forma como se dá a garantia do Direito. Enquanto o Estado Brasileiro ainda está em processo de construção e aprimoramento das políticas de demarcação de terras dos povos tradicionais, a Corte Interamericana demanda brevidade na efetivação dos direitos defendidos pela Convenção Americana, do qual o Brasil é signatário, e também prevista na legislação doméstica.
Os fatores que dificultam a efetivação desses direitos são diversos, incluindo o enfraquecimento das instituições responsáveis pela proteção dos povos indígenas, a discussão no Legislativo e no Judiciário sobre requisitos de comprovação de ocupação tradicional, os conflitos constantes e a judicialização de não indígenas reivindicando as áreas de demarcação além da lentidão nos procedimentos administrativos.
Em seu relatório mais recente, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos reitera as disposições definidas no caso povo Xucuru e de seus membros vs. Brasil, no sentido de que a falta de delimitação e demarcação efetiva do território indígena gera um clima de incerteza sobre os direitos assegurados às populações tradicionais.
A questão indígena é um tema recorrente na Corte Interamericana, não só no tocante à questão de demarcação das terras, mas em outros temas que podem ser considerados consequência desses, como proteção de crianças contra a violência.
Em 2022, um caso de grande repercussão causou preocupação na Comissão Interamericana que instou o Brasil a proteger as crianças Yanomamis que podem, de alguma forma sofrer com os conflitos ocasionados pelo embate entre indígenas e garimpeiros. No dia 25 de abril de 2022, um grupo de garimpeiros ilegais atacou a comunidade Yanomami de Aracaçá, na região de Waikás, em Roraima – área intensamente afetada pelo garimpo ilegal, segundo informações públicas. Como resultado disso, uma menina de 12 anos supostamente teria sofrido violência sexual e depois teria sido assassinada pelos garimpeiros. Ademais, uma mulher de 28 anos e seu filho de 3 anos foram supostamente sequestrados. A mulher teria conseguido escapar, no entanto, a criança teria sido jogada em um rio e seguiria desaparecida.
Percebe-se aqui, a grande importância de o Estado Brasileiro agir com efetividade na questão indígena, não apenas para assegurar os direitos territoriais mas também todas as garantias constitucionais, às proteções internacionais e os direitos humanos dos povos indígenas.
Notas e referências
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