Consentimento do morador não autoriza entrada de policiais em residência

21/12/2015

Por Redação - 21/12/2015

Em decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, a Terceira Câmara Criminal absolveu acusado pela prática do delito de tráfico de entorpecentes ante a ausência de materialidade em face da ilicitude das provas obtidas.

O acusado havia sido preso em flagrante por policiais que ingressaram em sua residência sem mandado judicial, após uma denúncia anônima. A decisão destacou que o consentimento do morador dado aos policiais não autoriza a entrada:

A anuência eventual do morador/acusado feita a policiais militares não se conforma à anuência/consentimento previsto no art. 5º XI, da Constituição. Aquela anuência/consentimento não há de ter sentido a agentes do Estado, mas, sim a terceiros, pessoas sem qualquer representação do Estado. Estes sim somente podem ingressar no domicílio alheio com anuência. Os agentes do Estado, entretanto, devem seguir os parâmetros legais e Constitucionais, pois agem segundo o princípio da legalidade. Nesses termos, devem investigar acusações anônimas e, depois, obterem o mandado judicial para tanto. Não podem, simplesmente, dirigir-se às casas dos cidadãos, alheios aos comandos legais e constitucionais. O flagrante delito que autoriza o ingresso deve ser induvidoso, certo, existente e previamente constatado, mediante gritos ouvidos de pessoas que estão sofrendo violações, ou visualizações feitas, ou, em outros casos, pela identificação de pessoas do exterior que relatam, por escrito, a prática de delito no interior da casa, naquele exato momento. Qualquer coisa em sentido contrário demanda a necessária investigação e obtenção de mandado de busca e apreensão. Atalhos tornam-se ilícitos e, em decorrência, ilícita a prova.

Leia abaixo a íntegra da decisão.


Número do processo: 70058372228 (N° CNJ: 0029785-12.2014.8.21.7000) Comarca: Comarca de Bento Gonçalves Data de Julgamento: 08/05/2014 Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro

ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA

APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. BUSCA DOMICILIAR FUNDADA EM DENÚNCIA ANÔNIMA. AUSÊNCIA DE MANDADO. PROVA ILÍCITA.

Inviolabilidade do domicílio. Não restou demonstrada a situação de flagrante delito apta a excepcionar a proteção conferida por força do artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal. Havendo suspeita da prática de delito em algum domicílio/residência é indispensável a prévia obtenção de mandado judicial de busca e apreensão. A lei não permite atalhos, nesse caso e, somente no caso de haver certeza da prática de ilícito penal é que fica autorizada a exceção do inciso XI do art. 5º da Constituição. A casa, como ASILO INVIOLÁVEL do indivíduo, implica a necessidade do prévio mandado de busca e apreensão, caso contrário a residência/domicílio não seria ASILO.

No caso, o ingresso na residência do réu se deu em razão de informação prestada por anônimo(s), não sendo caso de configuração de flagrante delito apto a justificar a exceção da norma fundamental. Deste modo, corolário lógico é a ilicitude da prova e, com sua inutilização, impõe-se a absolvição do acusado por ausência de provas da existência do fato.

A anuência eventual do morador/acusado feita a policiais militares não se conforma à anuência/consentimento previsto no art. 5º XI, da Constituição. Aquela anuência/consentimento não há de ter sentido a agentes do Estado, mas, sim a terceiros, pessoas sem qualquer representação do Estado. Estes sim somente podem ingressar no domicílio alheio com anuência. Os agentes do Estado, entretando, devem seguir os parâmetros legais e Constitucionais, pois agem segundo o princípio da legalidade. Nesses termos, devem investigar acusações anônimas e, depois, obterem o mandado judicial para tanto. Não podem, simplesmente, dirigir-se às casas dos cidadãos, alheios aos comandos legais e constitucionais. O flagrante delito que autoriza o ingresso deve ser induvidoso, certo, existente epreviamente constatado, mediante gritos ouvidos de pessoas que estão sofrendo violações, ou visualizações feitas, ou, em outros casos, pela identificação de pessoas do exterior que relatam, por escrito, a prática de delito no interior da casa, naquele exato momento. Qualquer coisa em sentido contrário demanda a necessária investigação e obtenção de mandado de busca e apreensão. Atalhos tornam-se ilícitos e, em decorrência, ilícita a prova.

APELO PROVIDO. ABSOLVIÇÃO EXTENSÃO DOS EFEITOS AO CORRÉU NÃO RECORRENTE.

Apelação Crime Terceira Câmara Criminal
Nº 70058372228 (N° CNJ: 0029785-12.2014.8.21.7000) Comarca de Bento Gonçalves
W.C. DE S. APELANTE
MINISTéRIO PúBLICO APELADO

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ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento à apelação, para absolver o réu das sanções do artigo 33, caput, da Lei 11.343/06, com base no artigo 386, II, do Código de Processo Penal. Expeça-se alvará de soltura. Estenda-se os efeitos ao réu não recorrente.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. Nereu José Giacomolli (Presidente e Revisor) e Des. João Batista Marques Tovo.

Porto Alegre, 08 de maio de 2014.

DES. DIÓGENES V. HASSAN RIBEIRO,

Relator.

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RELATÓRIO

Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro (RELATOR)

Assim constou do relatório da sentença proferida pela Fernanda Ghiringhelli de Azevedo:

O Ministério Público ofereceu denúncia contra:

D. DA C.H., de alcunha A., brasileiro, convivente, [...] ,atualmente recolhido na Penitenciária Regional de Caxias do Sul; e

W.C. DE S., de alcunha M.B., brasileiro, solteiro, [...], atualmente recolhido no Presídio local, em razão dos seguintes fatos:

1º FATO:

No dia 23 de julho de 2013, por volta das 16h30min, na residência localizada na Rua X, s/nº, bairro E., em Bento Gonçalves, W.C. DE S. e M.D. DA C.H. guardavam e tinham em depósito, em comunhão de esforços e conjugação de vontades, para venda e entrega ao consumo de terceiros, 84 (oitenta e quatro) pedras de 'crack', pesando aproximadamente 28,64 gramas (auto de apreensão da fl. 22), substância entorpecente esta que causa dependência física e psíquica (lauto de constatação legal e regulamentar, uma vez que de uso proscrito no Brasil (Portaria nº 344/98 – SVS/MS).

2º FATO:

No dia 23 de julho de 2013, por volta das 16h30min, na residência localizada na Rua X, s/n.º, bairro E., em Bento Gonçalves, W.C. DE S. auxiliou M.D.C. (então foragido do sistema prisional, devido à condenação por crime apenado com reclusão – informação da fl. 58 do IP) a subtrair-se à ação de autoridade policial – ao mentir, à equipe de policiais civis que se dirigiram à sua casa, que M. não se encontrava em seu interior (quando, na verdade, estava).

3º FATO:

No dia 23 de julho de 2013, por volta das 16h30min, na residência localizada na Rua X, bairro E., s/nº, em Bento Gonçalves, M.D. DA C.H. desobedeceu à ordem legal de funcionários públicos (policiais civis), a fim de evitar sua prisão em flagrante bem como evitar a apresentação de objetos ilícitos que possuía e trazia consigo.

4º FATO:

No dia 23 de julho de 2013, por volta das 16h30min, na residência localizada na Rua X, bairro E., s/nº, em Bento Gonçalves, logo após prática mencionada no 3º Fato, M.D. DA C.H. opôs-se, mediante violência e grave ameaça, à execução de ato legal emanado de funcionários competentes para executar (policiais civis) – ao se negar a pôr as mãos na cabeça e insistir em pôr a mão no seu bolso) dando a entender que estava armado, ameaçando, assim, a equipe de policiais civis que lá se encontrava).

5º FATO:

No dia 23 de julho de 2013, por volta das 16h30min, na residência localizada na Rua X, s/nº, bairro E., em Bento Gonçalves, M.D. DA C.H. possuía, mantinha em depósito e mantinha sob sua guarda 01 (uma) pistola de uso permitido, mas com número de série suprimido (raspado), calibre .380, (auto de apreensão de fl. 22 do IP), sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

CIRCUNSTÂNCIAS COMUNS AOS FATOS:

Na ocasião, após denúncias anônimas (fl. 63 do IP) darem conta de que M.D. DA C.H. (então foragido do sistema prisional – fl. 58), esteve nas imediações do 'Bar A.', bem como na residência de W.C. DE S. (situada na Rua X, s/nº, bairro C., em Bento Gonçalves), policiais civis dirigiram-se ao local, oportunidade em que localizaram W. na parte externa da residência e, quando indagado acerca da localização de M., o denunciado W., mesmo ciente de que M. encontrava-se no interior de sua residência, negou que o mesmo lá estivesse, a fim de o favorecer pessoalmente (2º Fato). 

Todavia, desconfiados (por terem ouvido vozes vindo do interior da dita casa), policiais civis adentraram na residência de W., momento em que encontraram A.P. de S. (companheira de M.), no interior desta e, ainda, localizaram M. dentro do banheiro da respectiva residência – ocasião em que este desobedeceu às ordens policiais (de pôr as mãos para o alto e de retirar as mãos do interior do seu bolso), bem como resistiu, mediante violência e grave ameaça, à prisão, sendo necessário o uso moderado da força para contê-lo (3º e 4º Fatos). 

Em ato contínuo, procedeu-se a buscas no interior da residência, momento em que foi localizado, dentro da descarga do vaso sanitário do banheiro, a arma de fogo mencionada no 5º Fato (a qual M. declarou ser de sua propriedade – fl. 38) bem como um pote plástico contendo, em seu interior, as substâncias entorpecentes descritas no 1º Fato (as quais eram, na ocasião, ocultadas por M. a mando de W., havendo o mesmo W. declarado serem de sua propriedade e destinadas a venda a terceiros, valendo-se, para tanto, de sua residência para armazenamento, preparação e distribuição de drogas – fl. 43). 

Foram apreendidos, ainda, em poder de A.P. de S.: 02 (dois) cachimbos pra fumar crack, 01 (um) telefone celular (auto de apreensão de fl. 19); com M.D. DA C., 01 (um) telefone celular e R$ 216,75 (duzentos e dezesseis reais e setenta e cinco centavos – auto de apreensão de fl. 20) em moeda corrente nacional; e, na posse de W.C. DE S., R$ 22,00 (vinte e dois reais – auto de apreensão de fl. 20) em moeda corrente nacional; e, ainda, no dormitório da residência, retalhos de papel alumínio (auto de apreensão da fl. 22).” (fls. 02/05).” 

O Ministério Público capitulou as condutas acima descritas como praticadas por W.C. DE S. nos artigos 348 do Código Penal e 33, caput, da Lei n.º 11.343/06, na forma do art. 69, caput, do Código Penal, e as imputadas a M.D. DA C.H., no art. 33, caput, da Lei n.º 11.343/06, art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei n.º 10.826/03 e artigos 329 e 330, na forma do art. 69, caput, todos do Código Penal.

Os acusados, assim como A.P. DE S., foram presos em flagrante, cujo auto de prisão em flagrante foi homologado às fls. 75/76, oportunidade em que restou convertida a prisão em flagrante em segregação preventiva, para garantia da ordem pública.

Impetrado habeas corpus em favor de A.P. (fls. 89/91), o qual teve a liminar deferida (fls. 86/88v.), e, ao final, a ordem concedida (fls. 139/144).

A denúncia foi recebida em 29 de agosto de 2013, conforme despacho exarado à fl. 134, oportunidade em que restou determinado o arquivamento do Inquérito Policial com relação à indiciada A.P..

Citados pessoalmente (fls. 145/146), os acusados apresentaram resposta à acusação (fl. 149), tendo o Juízo mantido o recebimento da denúncia (fls. 172).

Em sede de instrução, foram ouvidas quatro testemunhas arroladas na denúncia (CDs das fls. 184 e 324) e interrogados os acusados (CD da fl. 324).

Encerrada a instrução processual, os debates orais foram convertidos em memoriais (fl. 322), nos quais o Ministério Público requereu: a) a condenação de W. como incurso nas sanções do art. 33, caput, da Lei n.º 11.343/2006 (1.º fato) e do art. 384 (2.º fato), na forma do art. 69, caput, ambos do Código Penal; b) a absolvição de M. quanto aos 1.º e 5.º fatos, com base no art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal; e c)a condenação de M. nas sanções dos artigos 329 e 330 (3º e 4º fatos), na forma do art. 69, caput, todos do Código Penal (fls. 336/341).

A defesa pleiteou a absolvição de M.D. quanto a todos os fatos denunciados, sustentando inexistência de provas de seu envolvimento nos delitos de tráfico de drogas e porte de arma. No que toca aos delitos de desobediência e resistência, sustentou atipicidade da conduta. Quanto ao réu W., postulou a absolvição, sustentando: a) que a confissão do acusado, quanto ao 1º fato, restou isolada no contexto probatório; b) ausência de dolo, no que tange ao delito de favorecimento pessoal (fls. 342/348). 

Acrescento que W.C. de S. foi condenado nas sanções do artigo 33, caput, da Lei 11.343/06, à pena de 05 anos e 06 meses de reclusão, mais 700 dias-multa, à razão mínima legal; restando M. da C. condenado pela prática do crime previsto no artigo 330, caput, do Código Penal, a 02 meses detenção e 20 dias-multa, à razão mínima legal.

A defesa de W.C. de S., pela pessoa do Defensor Público Rafael Conrad, requereu a reforma da sentença para ser reconhecida a privilegiadora do parágrafo 4ª do artigo 33 da Lei de Drogas, e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (fls. 378-380).

O Ministério Público, pelo agente Luis Cláudio de Souza Martins, ofereceu contrarrazões, manifestando-se contrário ao provimento da apelação defensiva (fls. 385-388).

Em segundo grau, o Procurador de Justiça Mário Cavalheiro Lisboa requereu a degravação da  instrução pelo Tribunal de Justiça (fl. 392), o que foi indeferido por decisão monocrática (fl. 393).

Por fim, o Procurador de Justiça Ubaldo Alexandre Licks Flores opinou pelo parcial provimento da apelação, para ser aplicada a privilegiadora e mantida a pena de prisão (fls. 394-396).

É o relatório.

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VOTOS

Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro (RELATOR)

I - Inviolabilidade de Domicílio

Verifico, preliminarmente, não ter sido observado o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio. Corolário desta constatação é a decretação de nulidade da prova produzida.

Ao que se constata dos autos, houve manifesta ilegalidade na busca domiciliar procedida pelos agentes policiais na ocasião dos fatos. Segundo os relatos, a residência do réu foi adentrada pela guarnição em razão de informação supostamente prestada por indivíduo anônimo, durante. Não obstante estivessem ausentes quaisquer espécies de atos preparatórios, investigação prévia ou atos de campana, a referida denúncia anônima parece ter logrado justificar o ingresso no domicílio do réu.

É de se ressaltar que não houve mandado de busca e apreensão, e o ingresso se deu sob o manto do “flagrante delito”. Mas ora, veja-se que, se a mera denúncia anônima não é capaz de ensejar a concessão de mandado, o que se dirá sobre franquear o ingresso dos policiais na residência do suspeito sem o referido instrumento? Não se verifica, na espécie, hipótese de flagrante delito, já que as informações recebidas não são consideradas prova ou mesmo indícios suficientes à persecução penal, havendo inclusive divergências doutrinárias sobre a possibilidade de a mera denúncia anônima motivar a abertura de inquérito.

Sobre o valor da denúncia anônima, assim já se posicionou o Supremo Tribunal Federal:

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL. IMPUTAÇÃO DA PRÁTICA DOS DELITOS PREVISTOS NO ART. 3º, INC. II, DA LEI N. 8.137/1990 E NOS ARTS. 325 E 319 DO CÓDIGO PENAL. INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR NÃO REALIZADA. PERSECUÇÃO CRIMINAL DEFLAGRADA APENAS COM BASE EM DENÚNCIA ANÔNIMA. 1. Elementos dos autos que evidenciam não ter havido investigação preliminar para corroborar o que exposto em denúncia anônima. O Supremo Tribunal Federal assentou ser possível a deflagração da persecução penal pela chamada denúncia anônima, desde que esta seja seguida de diligências realizadas para averiguar os fatos nela noticiados antes da instauração do inquérito policial. Precedente. 2. A interceptação telefônica é subsidiária e excepcional, só podendo ser determinada quando não houver outro meio para se apurar os fatos tidos por criminosos, nos termos do art. 2º, inc. II, da Lei n. 9.296/1996. Precedente. 3. Ordem concedida para se declarar a ilicitude das provas produzidas pelas interceptações telefônicas, em razão da ilegalidade das autorizações, e a nulidade das decisões judiciais que as decretaram amparadas apenas na denúncia anônima, sem investigação preliminar. Cabe ao juízo da Primeira Vara Federal e Juizado Especial Federal Cível e Criminal de Ponta Grossa/PR examinar as implicações da nulidade dessas interceptações nas demais provas dos autos. Prejudicados os embargos de declaração opostos contra a decisão que indeferiu a medida liminar requerida.

(HC 108147, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 11/12/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-022 DIVULG 31-01-2013 PUBLIC 01-02-2013). 

Nesse sentido, deslocando o referido entendimento para o caso em apreciação, leiam-se os relatos prestados pelos policiais durante a fase instrutória:

Defesa:esta diligência (...) era uma atividade de rotina assim, ou vocês tinham um fim específico?

Testemunha: Na verdade nós fomos pra tentar localizar a casa onde o M. tava parando né.

Defesa: Sim, então era uma atividade apenas para recaptura de...

Testemunha: É, e investigação do tráfico também... Nós aproveitamos para entrar na vila pra olhar os pontos de tráfico também né..

(...)

Defesa: Mas vocês não tinham nenhum mandado de busca...?

Testemunha: Não, não...

Defesa: O senhor tinha informação sobre esta casa como ponto de drogas, ou não?

Testemunha: Não, tinha que o M. estava traficando, mas casa precisa (inaudível) nós não tínhamos a certeza da casa.

(A.J.C., mídia audiovisual à fl. 184) 

Os próprios agentes, portanto, confirmaram que não havia formais investigações antecedentes ao fato, tendo a busca domiciliar se baseado unicamente nas informações prestadas por anônimo(s). Clara, portanto, a violação ao artigo 5º, inciso XI, das Constituição Federal.

E mais:

Testemunha: (...) Aí a gente pediu pra ele abrir a porta, tinha informações de que o A. tava lá dentro. Aí ele ‘tá, vou abrir’, aí com a chave ele tentava abrir, tentava abrir, ficou horas tentando abrir, tanto é que ele entortou a chave, acho que justamente pra não abrir a porta.

(D.P.K., mídia audiovisual à fl. 324).    

A suspeita de que havia um foragido no interior da residência, baseada em informações anônimas e, em tese, no fato de os policiais terem “ouvido” o indivíduo e sua companheira conversando dentro da casa, não autoriza o ingresso sem mandado, mormente baseado na “permissão” informal de alguém que, como referiu o próprio policial, entortou a chave para não conseguir abrir a casa.

Ressalve-se que não existe previsão legal para a busca domiciliar a partir da permissão informal do proprietário. Do consentimento a que se refere o artigo 5º, XI, da CF não se infere que poderão ser realizadas buscas sem determinação judicial, apenas sob a anuência do morador. Se assim fosse, daria resultado a um quadro temerário, no qual os mandados de busca e apreensão seriam dispensáveis, já que polícia sempre poderia conseguir, extrajudicialmente, o “consentimento” do proprietário. Afinal, é de se ter em conta que, nas circunstâncias descritas nos autos essa anuência foi dada sob constrangimento. Tivesse o acusado realmente podido fazer essa escolha, não teria permitido a busca, tanto que se viu prejudicado pela descoberta dos objetos ilícitos. Em se tratando de direito fundamental à inviolabilidade de domicílio, simplesmente inexiste a possibilidade jurídica de ingresso sem autorização legal, ainda mais considerado o avançado horário noturno.

Diante do contexto fático acima ilustrado, é imperioso ressaltar a proteção oferecida pela Constituição Federal ao direito da inviolabilidade de domicílio, alçado ao posto de Direito Fundamental, insculpido no artigo 5º, inciso XI:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; 

Ora, se a Constituição estabelece que a casa é ASILO INVIOLÁVEL, isso significa dizer que apenas e tão somente em estrita observância dos casos previstos em lei é que se pode proceder ao ingresso na residência alheia. Entre tais hipóteses, a mera suspeita de prática de ilícito criminal, baseada unicamente em informações anônimas, não é apta a relativizar o direito fundamental à inviolabilidade de domicílio.

Certo é que a norma constitucional comporta exceção – flagrante delito, por exemplo – mas, para validade da violação ao direito destacado, deve-se ter certeza da ocorrência do crime, não cabendo sua comprovação a posteriori, depois de já violado o domicílio, sob pena de enfraquecer o comando constitucional, que deveria ser assegurado a todos os cidadãos e, via de consequência, tornar inválida a prova produzida.

Acerca do tema já me manifestei anteriormente:

APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. RESPOSTA À ACUSAÇÃO. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. ARTIGO 212 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. PRECLUSÃO. INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO. ILICITUDE DA PROVA. ABSOLVIÇÃO. Resposta à acusação. Inexistência de nulidade por inobservância do artigo 396 do Código de Processo Penal. A formalização de tal defesa possui a mesma finalidade da Defesa Prévia prevista no artigo 55 da Lei nº 11.343/2006. Necessário que se demonstre, no caso concreto, a existência de prejuízo a defesa do réu. Violação ao artigo 212 do Código de Processo Penal. A nulidade referida constitui-se vício de caráter relativo, cujo reconhecimento depende, necessariamente, de consignação expressa em momento oportuno, bem como demonstração da ocorrência de prejuízo, o que não ocorreu na espécie. Inviolabilidade do domicílio. A residência/domicílio como ASILO. Não restou demonstrada a situação de flagrante delito apta a excepcionar a proteção conferida por força do artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal. Havendo informação anônima ou não da prática de delito em algum domicílio/residência, é indispensável a prévia obtenção de mandado judicial de busca e apreensão. Aliás, informação anônima deve ser objeto de preliminar investigação policial. A lei não permite atalhos, nesse caso e, somente no caso de haver certeza da prática de ilícito penal é que fica autorizada a exceção do inciso XI do art. 5º da Constituição. E, para ter certeza, o policial deve ter tido condições de visualizar a prática do ilícito, ou de ouvir ruídos ou vozes nesse sentido. Noutras situações, impõe-se a obtenção do prévio mandado judicial. Deste modo, corolário lógico é a ilicitude da prova e, com sua inutilização, impõe-se a absolvição dos acusados por ausência de provas da existência do fato. APELAÇÕES PROVIDAS. (Apelação Crime Nº 70051282796, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Diógenes Vicente Hassan Ribeiro, Julgado em 13/12/2012). 

Não é possibilitado ao Estado cometer a violação ao argumento de suspeitar de algum ou alguns indivíduos. Isso certamente acarretaria a possibilidade de ingressar em domicílios de pessoas inocentes, ou que não estivessem possuindo drogas na ocasião. Do que se conclui que eventuais suspeitas devem, antes, ser submetidas a investigações e, ainda, ao crivo judicial para a obtenção do devido mandado de busca e apreensão.

Aliás, considera-se ilegal mesmo a busca domiciliar que, munida de mandado, se revela excessiva e discricionária, procedendo à apreensão aleatória franqueada pela “carta branca” concedida. Acrescento, sobre isso, ementa de precedente do Supremo Tribunal Federal:

AFRONTA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS CONSAGRADAS NO ARTIGO 5º, INCISOS XI, XII E XLV DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. De que vale declarar, a Constituição, que "a casa é asilo inviolável do indivíduo" (art. 5º, XI) se moradias são invadidas por policiais munidos de mandados que consubstanciem verdadeiras cartas brancas, mandados com poderes de a tudo devassar, só porque o habitante é suspeito de um crime? Mandados expedidos sem justa causa, isto é sem especificar o que se deve buscar e sem que a decisão que determina sua expedição seja precedida de perquirição quanto à possibilidade de adoção de meio menos gravoso para chegar-se ao mesmo fim. A polícia é autorizada, largamente, a apreender tudo quanto possa vir a consubstanciar prova de qualquer crime, objeto ou não da investigação. Eis aí o que se pode chamar de autêntica "devassa". Esses mandados ordinariamente autorizam a apreensão de computadores, nos quais fica indelevelmente gravado tudo quanto respeite à intimidade das pessoas e possa vir a ser, quando e se oportuno, no futuro usado contra quem se pretenda atingir. De que vale a Constituição dizer que "é inviolável o sigilo da correspondência" (art. 5º, XII) se ela, mesmo eliminada ou "deletada", é neles encontrada? E a apreensão de toda a sorte de coisas, o que eventualmente privará a família do acusado da posse de bens que poderiam ser convertidos em recursos financeiros com os quais seriam eventualmente enfrentados os tempos amargos que se seguem a sua prisão. A garantia constitucional da pessoalidade da pena (art. 5º, XLV) para nada vale quando esses excessos tornam-se rotineiros.

(HC 95009, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 06/11/2008, DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-06 PP-01275 RTJ VOL-00208-02 PP-00640) 

A apreensão ilegal procedida no domicílio do acusado é a prova que deu vazão a toda persecução penal, que se estendeu desde a abertura de inquérito, oferecimento e recebimento de denúncia e fase processual, até a condenação em primeira instância. Tratam-se todos, sem exceção, de atos processuais dependentes da prova ilícita originária e que, como tais, devem ser declarados nulos por derivação.

Por fim, declaro a extensão dos efeitos da absolvição ao réu não recorrente. Verifico que, uma vez decretado nulo o ingresso na residência, e, por conseqüência, todos os atos produzidos em dependência, não remanescem provas a respeito da conduta de desobediência prevista no artigo 330, caput, do Código Penal.

Deste modo, impositiva a absolvição do réu pela prática dos delitos dispostos no artigos 33, caput, da Lei n.º 11.343/2006, com fulcro no artigo 386, inciso II, do Código de Processo Penal.

II - Dispositivo

Pelo exposto, julgo procedente a apelação, para absolver o réu das sanções do artigo 33, caput, da Lei 11.343/06, com base no artigo 386, II, do Código de Processo Penal. Expeça-se alvará de soltura. Estendo os efeitos ao réu não recorrente, M.D. da C.H..

Des. Nereu José Giacomolli (PRESIDENTE E REVISOR) - De acordo com o(a) Relator(a).

Des. João Batista Marques Tovo - De acordo com o(a) Relator(a).

DES. NEREU JOSÉ GIACOMOLLI - Presidente - Apelação Crime nº 70058372228, Comarca de Bento Gonçalves: "À UNAMIDADE, DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO, PARA ABSOLVER O RÉU DAS SANÇÕES DO ARTIGO 33, CAPUT, DA LEI 11.343/06, COM BASE NO ARTIGO 386, II, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. EXPEÇA-SE ALVARÁ DE SOLTURA. ESTENDIDOS OS EFEITOS AO RÉU NÃO RECORRENTE, M.D. DA C.H.."

Julgador(a) de 1º Grau: FERNANDA GHIRINGHELLI DE AZEVEDO


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