O afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal na Lei nº 12.850/13

23/02/2017

Por Marcus Alan de Melo Gomes – 23/02/2017

O tratamento penal das organizações criminosas sempre foi confuso e problemático no Brasil, resultado de uma política criminal desorientada, que nada mais faz além de responder às demandas de controle social com impulsos repressivos de viés securitarista. O eficientismo da resposta penal definitivamente assumiu as rédeas das agências de criminalização no país, a despeito da inspiração contencionista da constituição federal em relação ao exercício do poder punitivo.

A Lei nº 12.850/13 foi promulgada com a aparente pretensão de concentrar em um único diploma normativo toda ou a maior parte da disciplina jurídica de natureza penal relativamente ao crime organizado. Definiu organização criminosa (art. 1º, § 1º), descreveu novos tipos penais (arts. 2º, 18, 19, 20 e 21) e instituiu um verdadeiro microssistema de investigação baseado em meios de obtenção de prova (art. 3º) que se valem essencialmente de estratégias de vigilância (ação controlada) dissimulação (infiltração de agentes), barganha (colaboração premiada) e devassa da privacidade e intimidade da pessoa (afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal; interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas; captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos e acústicos; e acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais) para imprimir eficácia à persecução penal. É o alvorecer da espionagem punitiva legitimada pelo direito no ambiente democrático pós-88.

Como seria de se esperar de qualquer iniciativa político-criminal preocupada com resultados - leiam-se condenações e prisões - a lei de organizações criminosas conflita em vários momentos com garantias constitucionais do processo penal (ampla defesa, contraditório, não autoincriminação, etc.). Um aspecto é particularmente preocupante: a falta de regulamentação legal para fins processuais penais do afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal. O art. 3º, VI, da Lei nº 12.850/13 permite a utilização da referida medida como instrumento probatório em qualquer fase da persecução penal, nos termos da legislação específica. Ocorre que os sigilos financeiro e bancário se encontram hoje regulados pela Lei Complementar nº 105/2001, que cuida, na verdade, do regime das operações financeiras e das restrições de acesso aos respectivos dados e registros por instituições privadas e públicas. Não se trata de um texto legal de natureza processual penal, daí não prescrever ele regras inerentes à obtenção de informações financeiras sigilosas para fins específicos de investigação policial ou instrução criminal. Quanto ao sigilo fiscal, está este assegurado pelo art. 198 do código tributário nacional, que, por razões óbvias, também não se imiscui em questões processuais penais.

A incompletude desse quadro normativo torna preocupante o emprego do referido meio probatório, como se verá a seguir.

A ilegitimidade da autoridade policial para o pedido de afastamento do sigilo

Muito embora o art. 3º, caput, da Lei nº 12.850/13 prescreva que os meios de obtenção de prova listados em seus incisos são permitidos em qualquer fase da persecução penal – incluída, portanto, a investigação policial – em nenhum dispositivo do referido diploma se atribui legitimidade à autoridade policial para o pedido de afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal. A legislação específica que regulamenta essa modalidade de sigilo[1] não prevê, de igual modo, a possibilidade de que o meio de prova seja autorizado a requerimento do delegado de polícia. E a simples prescrição de que as medidas elencadas nos incisos do art. 3º da lei em comento são admitidas em qualquer fase da persecução penal não outorga um mandato tácito à autoridade policial para provocar o juiz com o objetivo de ver afastado o sigilo.

De início, há que se ter em conta que a lei processual penal deve ser interpretada restritivamente. Isto significa que não se pode conferir à norma um alcance que não seja por ela estabelecido em termos expressos. Esse critério de exegese tem especial importância no curso da investigação policial, em virtude do déficit de incidência do contraditório e da ampla defesa em tal etapa da persecução penal. Destarte, só é de se admitir a iniciativa do delegado de polícia para o emprego de quaisquer medidas que dependam de autorização judicial quando a lei estabelecer explicitamente a sua legitimidade para movimentar a jurisdição penal. É a técnica legislativa que vigora, aliás, no código de processo penal. Todas as vezes em que se entendeu adequado que a decisão judicial pudesse ser proferida por provocação da autoridade policial, assim estabeleceu o texto do código, de maneira expressa[2]. E não somente para providências de apuração dos fatos, como também para a aplicação de medidas cautelares (v.g., arts. 282, § 2º, e 311 do CPP).

O mesmo ocorre, vale ressaltar, na legislação especial (art. 3º, I, da Lei nº 9.296/96; art. 2º e § 1º da Lei nº 7.960/89). A lógica que norteia a interpretação restritiva das hipóteses de legitimidade da autoridade policial para requerer ao juiz medidas probatórias e cautelares é inspirada pela ideia de máxima proteção dos direitos constitucionais atingidos pela persecução penal (liberdade, privacidade, intimidade, etc.).

Ademais, a própria Lei nº 12.850/13, ao regular em minudências outros meios de obtenção de prova que se equivalem ao afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal pelo potencial comum de afetação das garantias fundamentais, facultou à autoridade policial o pedido de instauração do incidente em juízo. É o que se dá com a colaboração premiada (art. 4º, §§ 2º e 6º), com a ação controlada (art. 8º) e com a infiltração de agentes (art. 10). Ora, se a lei admite que instrumentos probatórios específicos sejam empregados, a requerimento do delegado de polícia, para a investigação do crime organizado, porém não menciona essa possibilidade quanto ao afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, é porque, neste último caso, a medida não pode ser decretada a pedido da referida autoridade. Há aqui, sem dúvida, um silêncio eloquente da norma.

E nem se argumente que uma tal interpretação causará prejuízo à investigação das organizações criminosas, pois qualquer providência probatória prevista na lei poderá sempre ser requerida pelo Ministério Público, que, ressalte-se, na condição de titular da ação penal, é o órgão responsável por definir quais fatos, para fins de imputação, precisam ser provados e quais os mecanismos adequados para tanto.

Contraditório no afastamento do sigilo

O princípio constitucional do contraditório[3] abrange matéria de direito e de fato. Significa isto que é assegurado à defesa o direito de contribuir para a formação do convencimento do juiz mediante contraposição de argumentos à imputação, de sorte a refutar tanto alegações de fatos quanto interpretações da lei. A prova, obviamente, constitui objeto dessa dinâmica, que se inicia já no momento da colheita dos elementos de convicção. Até aqui, nenhuma novidade. Este é o arroz com feijão da teoria constitucional do processo penal.

Surpreende, portanto, que a Lei nº 12.850/13 nada estabeleça sobre o contraditório no afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal. Talvez tenha sido pretensão do legislador entregar à legislação específica a disciplina da questão. Todavia, e conforme já mencionado, a LC nº 105/2001 não se preocupa com os nós do processo penal e não prevê, destarte, um procedimento de tramitação do pedido de quebra do sigilo. Limita-se a permiti-lo quando necessário à “apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial” (art. 1º, § 4º).

A omissão da lei ordinária não afasta, por evidente, a incidência de um princípio constitucional. Particularmente no que concerne ao contraditório, as mais recentes alterações do código de processo penal passaram a exigir, para determinados atos, a intimação da defesa em momento precedente à decisão judicial, assegurando-se, inclusive, oportunidade para manifestação técnica[4]. Uma demonstração induvidosa de que o processo penal brasileiro deve se amoldar ao sistema de garantias constitucionais.

Não há incompatibilidades entre a tramitação do requerimento de quebra dos sigilos e o contraditório prévio. Os dados e as informações financeiras, bancárias e fiscais compõem registros e arquivos de instituições privadas e públicas que não podem ser extraviados ou adulterados pelo investigado ou réu. Além disso, dizem respeito a fatos pretéritos, cuja ocorrência não pode mais ser evitada[5].

Logicamente que não se está a tratar aqui das situações de interferência indevida do acusado que causa embaraços à investigação ou à instrução criminal. Para essas hipóteses, remanesce a possibilidade de aplicação de medidas cautelares adequadas (art. 282 do CPP), de modo a se preservar a regularidade da persecução penal.

Publicidade processual no afastamento do sigilo

A proteção constitucional da privacidade e da intimidade[6] alcança a vida financeira, bancária e fiscal da pessoa, ressalvadas as permissões legais de acesso a informações para fins específicos, no interesse da justiça penal. A publicidade desses dados e registros deve acontecer, portanto, dentro dos limites objetivos e subjetivos da investigação ou do processo criminais. Ela é, por assim dizer, uma publicidade interna, já que circunscrita aos fatos e circunstâncias de relevância para a apuração (limites objetivos), bem como aos intervenientes da justiça (limites subjetivos). A quebra do sigilo não pode corresponder a um descortinar incondicional de aspectos da vida pessoal do investigado, sob pena de se desvirtuarem as finalidades legais que autorizam excepcionalmente a relativização da tutela constitucional.

Desse modo, ao decretar o afastamento do sigilo, deverá o juiz determinar que as informações recebidas permaneçam restritas ao âmbito do inquérito policial ou do processo[7], o que significa que não estarão elas disponíveis a terceiros estranhos ao juízo competente, inclusive a imprensa. As disposições da Lei nº 12.850/13 e da LC 105/2001 não instituem uma relativização geral da privacidade e intimidade do réu, mas autorizam tão somente uma publicidade específica para os propósitos da persecução penal.

Ademais, o sigilo interno – entenda-se processual - das informações obtidas deve perdurar até sentença de mérito, que é o ato em que o juiz aprecia a prova. Aqui, a publicidade inerente à motivação da decisão[8] alcança todo o objeto do processo. Mas pode ser que fatos originalmente protegidos pela inviolabilidade constitucional do que é íntimo e privado não precisem ir a público, a despeito do processo. Isso ocorre quando a sentença não julga a imputação para chegar a desfecho absolutório ou condenatório, como acontece, por exemplo, na extinção de punibilidade. O que justificaria a divulgação precoce de informações da vida privada do acusado se, de resto, existe sempre a possibilidade de que o processo seja extinto sem o julgamento da imputação[9]? Nada.

Não se pode esquecer que a publicidade do processo existe para proporcionar a fiscalização do exercício do poder, não para levar detalhes da privacidade e intimidade do réu a conhecimento de terceiros sem que tal providência tenha qualquer utilidade processual.

Sucinta conclusão

No que diz respeito ao afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, a Lei nº 12.850/13 praticamente nada modificou em relação ao que anteriormente disciplinava a Lei nº 9.034/95. Os problemas persistem: a incompletude da legislação específica que trata da matéria e a falta de identidade com as questões de natureza processual penal; o déficit de constitucionalidade da norma, outra vez inspirada no discurso eficientista da persecução penal; o preocupante risco de que um instrumento probatório cujo emprego deveria ter caráter excepcional acabe por se converter na prima ratio dos mecanismos de investigação do crime organizado, viabilizando devassas abusivas e inúteis da privacidade do réu.

Esse quadro pode ser remediado, contudo, por uma interpretação restritiva que promova a otimização constitucional da lei, de modo que a sua aplicação seja orientada pelo rigoroso respeito das garantias fundamentais do processo penal. Se não for assim, teremos dado outro passo – mais um, aliás – na consolidação de uma política criminal que insiste em fazer pouco caso do Estado democrático de direito.


Notas e Referências:

[1] Lei complementar nº 105/2001 e código tributário nacional.

[2] Vejam-se os artigos 127 e 149, § 1º, do código de processo penal.

[3] Art. 5º, LV, da constituição federal

[4] Art. 282, § 3º; 396, caput; e 397 do código de processo penal.

[5] No caso das interceptações de comunicações telefônicas, é exatamente o tempo futuro da prova a condição que impõe o diferimento do contraditório (art. 8º, parágrafo único, da Lei nº 9.296/96). Essa circunstância não se verifica em relação ao sigilo financeiro, bancário e fiscal, que alcança tempo passado e tem por objeto, portanto, fatos consumados.

[6] Art. 5º, X, da constituição federal.

[7] Conforme autoriza o art. 792, § 1º, do código de processo penal.

[8] Art. 93, IX, da constituição federal.

[9] Imagine-se a hipótese de morte do réu ou prescrição.


marcus-alan-de-melo-gomes. Marcus Alan de Melo Gomes é Pós-Doutor em Direito e Democracia pela Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Membro Associado do Centro de Investigação sobre Crime, Justiça e Segurança, da Escola de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Professor Associado da Universidade Federal do Pará (UFPA). Juiz de Direito em Belém..


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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