John Locke[i], um jusnaturalista, afirmava que “o homem possui direitos naturais e inalienáveis”, sendo que podemos subtrair deste pensamento que ter uma existência digna, ou seja, viver com dignidade é um direito inalienável de todo ser humano.
Afirmava que “o Estado vem em segundo plano, em primeiro vem o indivíduo singular. O homem detentor de direitos e o Estado não tem competência para apodara-lo”. Em outras palavras, antes do Estado constituído como tal, há necessariamente que haver o indivíduo desenvolvido em toda a sua plenitude, para que possa constituir organismos que representem os interesses coletivos de uma determinada sociedade.
Immanuel Kant[ii] ensinava que “o homem possui um valor inerente a sua pessoa, a dignidade”.
Em que pese o trabalho ser aquele que ocupa o tempo e a mente do homem, extraindo de si toda sua criatividade e potencial, servindo de meio para a sua subsistência, trazendo o sustento para seus dependentes, bem como proporcionando o sentimento de dever cumprido, causando a sensação de utilidade ou importância, não há como falar em dignidade de forma dissociada ao trabalho.
Neste sentido, no contexto da sociedade moderna, não há como pensar em dignidade para o indivíduo que, afastado do labor, vive marginalizado numa sociedade consumista, a qual priva qualquer um de sua própria existência, quando este não detém os meios para sobreviver.
Como principal fulcro deste artigo relacionamos o trabalho ao princípio da dignidade humana, os direitos constitucionais assegurados aos trabalhadores, os deveres da justiça do trabalho, e a comparação das relações trabalhistas entre Brasil e Estados Unidos.
A título de estabelecer um paralelo entre as relações trabalhistas entre estes dois países no caso concreto e enriquecermos o entendimento das modernas relações de trabalho e responsabilidades civis entre estes dois mercados, faremos uma breve análise deste tema.
Nos Estados Unidos os empregados não são obrigados a se sindicalizarem, tampouco a ter um dia de trabalho confiscado por força de lei para uma associação a qual este não deseja fazer parte e, que talvez, nem o represente por ocasião de sua situação de desemprego.
De um modo geral, os empregados nesta economia trabalham por hora, ou seja, seus vencimentos serão o somatório das horas trabalhadas no mês, sem contar com o pagamento do descanso semanal remunerado (DSR), como ocorre no Brasil. O País não conta com Tribunais da Justiça do Trabalho, tampouco com magistrados especializados em julgar tão somente demandas judiciais trabalhistas, a chama “justiça especial”.
Os contratos de trabalho são regidos pela justiça comum (entenda-se Direito Civil-Empresarial), ou seja, o que rege os direitos legais entre empregados e empregadores nas relações de trabalho reside no contrato celebrado entre as partes. Em suma, aquele que romper as cláusulas contratuais tem a responsabilidade civil em indenizar a outra parte, tanto em contratos celebrados com a esfera privada, quanto com a privada.
Quando a lide residir em acidente do trabalho, haverá a abertura de investigação policial para apurar as responsabilidades criminais em face das lesões corporais sofridas pelo empregado acidentado. Em outras palavras, se for comprovado que o empregado se acidentou devido às condições perigosas no local de trabalho (chamada de condição insegura), o empregador será responsabilizado criminalmente. Caso contrário, se a responsabilidade do acidente causado ao empregado for devido aos seus atos inseguros, ou seja, devido a sua imperícia, imprudência ou negligência do empregado, este é que será responsabilizado.
Atualmente a população dos Estados Unidos é a terceira maior do mundo, contabilizando 327 milhões de cidadãos segundo o U. S Census Bureau (2018)[iii], sendo que destes, sua força de trabalho totalizava 160 milhões de trabalhadores em janeiro de 2018, segundo o U.S Bureau of Labor Statistics[iv].
O que pretendemos significar com isso é que os Estados Unidos superam o Brasil[v] tanto em termos de habitantes quanto em número proporcional de trabalhadores, sendo que a demanda trabalhista neste é em média 35 vezes maior do que naquele.
Segundo o economista Celso Pastore[vi], em 2016 enquanto que no Brasil foram ajuizadas 3,9 milhões de ações trabalhistas, nos Estados Unidos este número foi de apenas 110 mil na esfera federal.
Em outras palavras, os Estados Unidos têm uma população 63% maior que a do Brasil e possui 62% mais trabalhadores americanos que brasileiros. No entanto, a demanda trabalhista no Brasil supera a dos Estados Unidos em 72%.
Segundo o Ministro Luís Roberto Barroso[vii] do STF, “o país é responsável por 98% das ações trabalhistas do planeta, tendo apenas 3% da população mundial. Todos os anos, produzimos mais ações judiciais na área do que a soma de outros países...”
Diante das estatísticas oficiais publicadas pelos respectivos países, uma provocante reflexão nos faz perquirir os motivos pelos quais tantos trabalhadores brasileiros emigram para os Estados Unidos anualmente para se arriscarem trabalhando ilegalmente num País onde não há justiça do trabalho, a sindicalização não é obrigatória, os contratos são regidos pelo Direito Civil, pois não há, a exemplo do Brasil, uma Consolidação das Leis do Trabalho, dentre outras proteções do trabalhador, em detrimento de todas as proteções que o Estado brasileiro confere aos trabalhadores do País.
Por que a lógica inversa não ocorre, ou seja, sendo os trabalhadores americanos tão “desprovidos” de proteções legais quanto aos seus direitos trabalhistas, não buscam refúgio no Brasil para trabalhar legalmente e desfrutarem das mesmas benesses trabalhistas que os trabalhadores brasileiros?
Não obstante os entraves causados pelas milhares de ações trabalhistas em curso no Brasil, as quais causam prejuízos ao Estado, aos empresários e até mesmo ao próprio trabalhador, dado que este nunca recebe efetivamente o que tem direito, espera anos na justiça para perceber algum direito e ainda por cima tem seu nome divulgado nos buscadores de conteúdo na Internet pela própria Justiça do Trabalho, disponibilizando ao potencial empregador, informações de que aquele candidato moveu ação na justiça contra seu ex-empregador. Há que se considerar se há mais desvantagens do que desvantagens no papel desta justiça especializada na defesa dos direitos dos trabalhadores.
Em que pese à máxima de que “uma justiça tardia já não é mais justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”, cabe aos magistrados e ao Poder Judiciário, como fiéis legatários da justiça, privar pelos preceitos fundamentais dos direitos dos trabalhadores, quais sejam: Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III, CRFB/88), Princípio da Boa-Fé Objetiva (arts. 113 e 422, CC/02) e, Princípio da Duração Razoável do Processo (art. 5º, LXXVIII, CRFB/88, EC nº 45/2004 e art. 4º, CPC/2015).
NOTAS E REFERÊNCIAS
[i] Filósofo inglês (1632 a 1704), considerado o pai do liberalismo, pertencente às escolas do Contrato Social (Contratualismo) e do Direito Natural.
[ii] Filósofo prussiano (1724 a 1804), pertencente à Escola Iluminista.
[iii] Disponível em https://www.census.gov/. Acesso em 03 abri 2019.
[iv] Disponível em https://www.bls.gov/. Acesso em 03 abri 2019.
[v] Segundo o IBGE, a população estimada do Brasil em 2018 era de aproximadamente 208 milhões de habitantes, sendo que a sua força de trabalho está estimada em 100 milhões de trabalhadores.
[vi] É presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomercio do Estado de São Paulo.
[vii] Disponível em: https://tvuol.uol.com.br/video/brasil-tem-98-das-acoes-trabalhistas-do-mundo-diz-ministro-barroso-04028D9A3860D4916326. Acesso em 19 dez 2019.
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