REFLEXÕES SOBRE A ATIVIDADE POLICIAL, A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS HUMANOS: O CASO DE DELEGADO QUE PRESTIGIOU A LIBERDADE

13/09/2019

Cumprir a Constituição é executar sua intencionalidade e promover sua realização. Para o agente público, com maior razão, cumprir a Constituição é remover os obstáculos que impedem a submissão da vida social aos valores plasmados no seu Texto. Por isso, cumprir a Constituição é fazer cumprir a Constituição.

Tal constatação parte da própria base da estrutura do Direito enquanto forma social de incidência nos conflitos de interesses, ou seja, como conjunto de teoria e praxes voltado à solução de problemas concretos que surgem no âmbito das relações sociais. E, tanto é assim, que as mais diversas teorias já produzidas sobre os efeitos do Direito na sociabilidade humana procuram conciliar um âmbito abstrato (de normatividade e sua disciplina técnico-científica) com um âmbito concreto (de sua efetiva aplicação cogente às relações entre os seres humanos).

Em especial, e não pôr acaso, no tocante ao Direito Constitucional e aos direitos humanos há sempre uma preocupação teórica com a prática jurídica correlata. Seja em afirmações tão díspares como a de que (a) a verdadeira Constituição é o conjunto dos fatores reais do poder[1], ou a de que (b) a força normativa de uma ordem constitucional depende da “vontade de Constituição” que os agentes sociais possuem em determinada conjuntura histórica[2], ou bem quando se escuta aquela visão que, sem cerimônia, afirma ser (b) a Constituição o que a Corte diz que ela é,[3] sempre estão presentes os elementos concretos da aplicação social das normas como centros de preocupação com a realidade do Direito.

E essa espécie de preocupação torna-se imprescindível no Brasil de hoje, em tempos nos quais a Constituição passa por constantes provações de sua efetividade diante de agressões oriundas incluso, e lamentavelmente, da chefia do Executivo federal, bem como de forças econômicas nacionais e internacionais que contrariam conquistas obtidas desde os movimentos pró-democracia de 1986.

É nessa esteira que o cumprimento dos ditames constitucionais relativos aos direitos humanos deve ser não apenas lembrado como também realçado, especialmente em meio à prática difusa da atividade dos agentes estatais que atuam de forma mais próxima com o cotidiano da vida e da liberdade, dentre eles a polícia. Já tem sido afirmado por estudiosos da segurança pública que o principal desafio para os defensores dos direitos humanos e para quem sonha com políticas nessa área, baseadas na promoção da cidadania, é superar a oposição que se criou entre a atividade policial e os direitos humanos.

No chamado Estado-penal, um potente ator cultural, nas palavras de Wacquant, com categorias predefinidas, imaginário próprio e, sobretudo, uma adesão subjetiva à barbárie por parte de segmentos da sociedade encantados com a “tranquilidade cidadã” promovida na base dos snipers, para além das teses que promovem caracterizações de inimigos despersonalizados e despossuídos de direitos que, não por coincidência, regularmente habitam nas periferias das urbes brasileiras, o fato de uma prática diferenciada para além da celebração permite linhas de reflexão sobre todos esses temas.

1 – O CASO

 A imprensa especializada noticiou[4] (e infelizmente não a grande mídia de massas) que O Delegado Jaime Pimentel Junior, da Seccional de Mogi das Cruzes, Polícia Civil de São Paulo, recebeu, em 20 de agosto de 2019, uma pessoa, M., suspeita de prática de crime de furto no Estado do Goiás no ano de 2004. A pessoa foi conduzida coercitivamente por policiais até o 1º DP da cidade pois contra ele havia mandado de prisão preventiva expedido por autoridade judicial competente.

O Delegado constatou, porém, não apenas discrepância entre a data de nascimento do suspeito detido e a registrada no mandado, como também chamou a atenção a insistência com a que a pessoa alegava que nunca estivera no Estado de Goiás e que o teria acontecido é que um irmão, de “má índole”, poderia ter-se utilizado de seu RG, para fins de prática delitiva. O Delegado verificou a vida pregressa da pessoa: tratava-se de pedreiro de 45 anos de idade, que há 7 anos residia em São Paulo, vindo diretamente de Minas Gerais, sem nenhum fato desabonador de sua conduta social. Nessa altura, a convicção do Delegado sobre o cumprimento do mandado já estava abalada.

O passo seguinte foi tentar contatar à autoridade judicial que ordenou a prisão e obter os prontuários originais de identificação civil do suspeito, cujos registros eram de MG. O Delegado não obteve sucesso, como tampouco na tentativa de diligenciar cotejo entre a identificação dactiloscópica registrada em Goiás e em São Paulo. O advogado designado não oferecia razões para evitar a privação da liberdade. Destarte, não havia outro remédio senão cumprir o mandado de prisão, ainda que, no seu foro interno lhe atormentava que existissem fatores que apontavam que a pessoa não era autora das práticas criminosas.

Diante da situação o Delegado optou por duas medidas quase simultâneas: dar cumprimento ao mandado e imediatamente impetrar Habeas Corpus em favor da pessoa. O writ foi redigido no próprio corpo do Boletim de Ocorrência e com fundamentos no artigo 5º, LXVIII, da Constituição Federal, e artigos 647 e 648, do Código de Processo Penal, expondo: “(...) há fortes indícios de que se trata de outra pessoa sobre a qual deve recair a medida cautelar, pois, tudo leva a crer que ocorreu a utilização do nome e qualificação de M. por outra pessoa, ou seja, esta autoridade policial em sede de cognição sumaríssima, acredita que a pessoa detida é diversa daquela que delinquiu.”[5].

O resultado foi a concessão da ordem, com revogação da prisão preventiva do Paciente, ao qual foram impostas outras medidas cautelares alternativas à privação de liberdade.

2 – SOBRE POLÍCIA E DIREITOS HUMANOS

O caso concreto que relatamos destoa da massiva quantidade de notícias diuturnas que se divulgam sobre a “normalidade” da atuação do Estado em sua tarefa de garantia e promoção da segurança pública. Já afirmamos linhas atrás que no Brasil, ao igual que em outros países, há um distanciamento notório entre polícia e direitos humanos.

Esse afastamento vem de muito antes da ditadura. Parece-nos que razão assiste a L.E. Soares quando afirma que o regime militar não inventou a tortura e as execuções extrajudiciais ou a ideia de que vivemos em guerra contra inimigos internos, senão que essas práticas perversas, racistas e autoritárias, têm a idade das instituições policiais e a ditadura o que fez foi reorganizar os aparatos policiais intensificando sua violência, adestrando e expandido o espectro de abrangência.

É claro que há quem pretenda justificar, a partir de um plano que começa com Weber e que rapidamente é abandonado para ingressar em teses jakobianas, que o monopólio da violência legítima no Estado incumbe às Forças Armadas e à polícia, nos âmbitos externo e interno, respectivamente, e que a ação desses corpos se destina à “neutralização da periculosidade” implícita à dinâmica do sistema.  

Na nossa perspectiva, abraçar a segurança pública como direito social é, precisamente, no Estado arregimentado pelo Direito, a sujeição constante à Constituição e às leis por parte desses órgãos. A extrapolação como expediente e rotina implica um descumprimento tanto da primeira quanto das segundas.

A questão não se resume à análise da atuação dos polícias, senão à necessidade de uma discussão nacional sobre segurança como direito social, sobre a efetividade estatal na concretização dos objetivos fundamentais do Estado (artigo 3º da CF), que supere tabus e atenda ás exigências de dignidade de vários atores nesse delicado âmbito da relação entre cidadania, paz social, vitimários, vítimas e promoção de valores democráticos.

O Anuário de Segurança Pública que veio á luz em 10 de setembro, confirma que as mortes de polícias em ações violentas vêm diminuindo, situação que, como se reconhece no Informe, não se deve à atuação das autoridades políticas estatais, pois nenhuma política pública sobre estas questões foi desenvolvida pelo Estado brasileiro, mesmo com a vigência da Lei 13.675/18 (Lei do Sistema Único de Segurança Pública - SUSP) que prevê, dentre outras questões, a “[...] proteção, valorização e reconhecimento dos profissionais de segurança pública”, senão muito mais à atuação de entidades de classes que realizam diversas campanhas sobe como deve ser a atuação do policial. Vale dizer que muitas dessas atividades se contrapõem a uma visão governamental que reproduz o mito do policial herói sempre vivo  porque que essa forma irresponsável de tratar o assunto escamoteia e “(...) gera, na prática, a omissão do Estado para questões básicas, como por exemplo, a melhoria em suas condições sociais, e de trabalho. Ao mesmo tempo, impele o profissional a atuar imbuído do ethos do policial guerreiro, imune, portanto, a qualquer tipo de dificuldade e/ou problemas”. [6]

Agora bem, de outra banda, mas imbrincada com esta visão denunciada n informe, em matéria de letalidade policial, os dados apontam que em cidades como são Paulo e Rio de Janeiro, a cada 100 mortes violentas, entre 20 e 23 são provocadas por ação policial. Também, se lê com indignação no Anuário que, “(...) no que tange à seletividade racial, o padrão de distribuição da letalidade policial aponta para a expressiva sobrerrepresentação de negros dentre as vítimas. Constituintes de cerca de 55% da população brasileira, os negros são 75,4% dos mortos pela polícia. Impossível negar o viés racial da violência no Brasil, a face mais evidente do racismo em nosso país”. [7]

Essas formas de violência, comenta G. Mingardi, se justificam interna corporis com argumentos, por um lado, de que a lei é dúbia, e assim, quando há margem para interpretação, os policiais que realizam o trabalho nas ruas precisam atuar sob suas próprias regras; por outro lado, há quem se afirme no fato de que há opiniões de respaldo de segmentos sociais e de autoridades estatais das várias ramificações do Poder Público. De certo, nota-se que ao ritmo da desconfiguração da Constituição, uma massa opinativa que compactua e justifica abertamente a atuação ilegal de policiais, o espancamento, a tortura ou a execução de pessoas consideradas criminosas ou supostamente criminosas, perdeu o medo da exposição pública e hoje abertamente defende estas posturas completamente à margem dos princípios e orientações constitucionais. [8]

Mas, retornando ao caso que comentamos, o Delegado JPJ afirmou em entrevista que sua conduta “muda o paradigma da visão do delegado como uma figura que só prende. Ele também pode ser um garantidor da liberdade”[9].  Certamente, Delegados de Polícia Civil são dirigentes que exercem o dever estatal de segurança pública, cuja missão precípua é “a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (art. 144, “caput”, IV e § 4º da CF). Sobre sua competência específica, ademais, observe-se que a Constituição do Estado de São Paulo determina não apenas que a Polícia Civil em geral “exerce atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica” como também que os Delegados atuam com “independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária” (art. 140, §§ 2º e 3º).

Logo, a competência constitucional atribuída ao Delegado de Polícia Civil é, antes de tudo, fazer cumprir a ordem jurídica, para garantir a segurança pública com vistas à incolumidade das pessoas, o que significa dizer, em outras palavras, que deve fazer cumprir a Constituição e os direitos humanos ali positivados, bem como toda a sorte de tratados internacionais aos quais o Brasil tenha se comprometido ao cumprimento na ordem jurídica internacional. É dizer, os Delegados estão atrelados no exercício das suas funções à cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, II e III), a vida, a liberdade, a igualdade e a segurança (art. 5º, “caput”), a vedação de tortura, tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), o amplo acesso à jurisdição (art. 5º, XXXV), o respeito à legalidade penal (art. 5º, XXXIX), o respeito à integridade física e moral dos presos (art. 5º, XLIX), o devido processo legal necessário para qualquer possibilidade de privação da liberdade (art. 5º, LIV), a presunção de inocência (art. 5º, LVII), o imediato relaxamento de prisão ilegal (art. 5º, LXV), dentre outras garantias.

E como instrumento de efetividade judicial dos direitos humanos atinentes à liberdade, precipuamente à liberdade como direito de locomoção ou de não-incidência de sua privação, encontra-se a previsão do Habeas Corpus, expressamente consignado no dispositivo do art. 5º, LXVIII e que estabelece que a ordem deverá ser concedida sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. A melhor doutrina já afirmou que o termo “sempre” foi utilizado na dicção textual para fazer referência à necessidade de preservação da liberdade humana perante atos tendentes à ilegal restrição de tal direito fundamental, configurando verdadeiro dever do Estado a concessão da liberdade nesses casos.

Observa-se, então: uma vez que o Delegado de Polícia Civil é autoridade dirigente de órgão incumbido de promover o resguardo da segurança pública, com o correlato cumprimento da ordem jurídica, e sob verdadeira independência funcional em sua livre convicção investigativa, não há como fugir da conclusão de que se trata de autoridade que deve estar disposta a resguardar os direitos humanos quando estes se vejam ameaçados, inclusive quando e especialmente a ameaça provier de ato estatal. E, como cumpridora da ordem jurídica, cabe a tal autoridade utilizar-se dos instrumentos que a Constituição disponibiliza para o resguardo e a efetividade dos direitos humanos, dentre eles, portanto, o Habeas Corpus.

A conclusão a que se chega no caso é que, na contramão do senso comum vigente, o Delegado fechou as portas ao etiquetamento social e ao punitivismo e abriu as dos valores do sistema, sem resignar-se à punição descabida.

Isso é extremamente valioso num país no qual a transição à democracia não passou pela segurança pública, porque não houve momento de responsabilização e não se chamaram as coisas por seu nome. No atual contexto, não é pouco que a prática de um Delegado lembre que a autoridade tem o dever jurídico de buscar a reversão de ordem que manifestamente contrarie a dignidade humana, autêntico elemento de precompreensão do ordenamento jurídico.  Por isso, no terreno da Ciência do Direito que estuda essa passagem do âmbito abstrato ao concreto, a atuação do Delegado revelou-se constitucionalmente necessária, pertinente e valiosa em tempos tão conturbados para a democracia e os direitos. 

 

Notas e Referências

[1] LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição? 3ª ed., Trad. Ricardo Rodrigues Gama, Campinas: Russell, 2009.

[2] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

[3] Nos referimos à célebre sentença do Chief Justice Edward Hugges, que alguns proclamam com frieza pavorosa no Brasil e que já gerou, em alguns casos, uma passagem não tranquila à arbitrariedade hermenêutica.

[4] Como, por exemplo, no sítio eletrônico CONJUR: < https://www.conjur.com.br/2019-ago-22/delegado-impetra-habeas-corpus-favor-preso>, e no sítio de notícias JOTA: < https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/justica/minha-acao-muda-o-paradigma-do-delegado-como-uma-figura-que-so-prende-23082019?fbclid=Iw%E2%80%A6>

[5] Apud in: < https://www.conjur.com.br/dl/delegado-impetra-habeas-corpus-favor.pdf>

[6] http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf. P. 49.

[7] Idem. P. 58.

[8] G. Mingardi. Bala Perdida. São Paulo: Boitempo. P. 14.

[9] < https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/justica/minha-acao-muda-o-paradigma-do-delegado-como-uma-figura-que-so-prende-23082019?fbclid=Iw%E2%80%A6>

 

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